UMA HISTÓRIA DO SERTÃO


A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO NORDESTINO

Um Jeito “Sertanejado” de ser

No Rio Grande do norte, assim como nas unidades federativas que compõem a região que hoje se entende como Nordeste, se desenvolveu um tipo de humanidade peculiar. O fragmento que inaugura esse artigo por mais que seja antigo em relação às análises que hoje já são latentes, estabelece uma distinção do ponto de vista antropológico reunindo membros de uma única nação, que comungam da mesma língua, entretanto possuem entre si um traço singular no modo de vida, no que se diz respeito a organização da família, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos, na culinária, na forma de vê o mundo e na sua religiosidade. Esse “ser” foi moldado na mais inapropriada condição de existência, num ambiente insuportável, no qual o clima desfavorece a vida.
Em termos geográficos, as condições da região estabelecida como polígono das secas possuem características peculiares as quais integram uma situação desfavorável ao empreendimento da agricultura. Arbustos secos, tortuosos e negros, plantas xerófilas, cactáceas com longos espinhos e integrantes da caatinga, tipo de vegetação semelhante à dos desertos africanos.
Sabemos que na Capitania do RN, a agroindústria açucareira não granjeou grande sucesso, e neste ponto podemos entender que as condições climáticas que acima enumeramos, somadas a tomada da pecuária como modo de produção, atuaram decisivamente na formação de uma humanidade que precisou encontrar uma oportunidade, achando-a na execução desta atividade que despontou como subsidiária a monocultura de cana-de-açúcar. A pecuária passou a fornecer carne e forma motriz para os engenhos, surgindo uma comunidade diferenciada ligada com costumes atrelados ao dia-a-dia destes currais de gado, à léguas de distância do litoral.
Hoje, as discussões historiográficas que permeiam a análise política, estão sempre ligadas ao imaginário e aos conceitos de nação e estado. Se empreendermos esta análise a questão do Nordeste, podemos estabelecê-lo como um recorte imaginário dentro dos limites federativos do Brasil onde um tipo humano se diferencia com suas peculiaridades e sua capacidade de sobreviver a todas as adversidades encontradas na região que executam seu trabalho árduo: o Vaqueiro, personagem  símbolo do sertanejo brasileiro, seja jagunço, tropeiro, amansador ele reúne um leque de trejeitos próprios que não se consegue encontrar em nenhuma outra região do mundo.
“O tipo nordestino vai se definindo como um tipo tradicional, voltado para a preservação de um passado regional que estaria desaparecendo... se situa na contramão do mundo moderno, rejeita as suas superficialidades, sua vida delicada e histérica. Um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos; um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise; um ser viril, capaz de retirar a sua região da situação de passividade e subserviência em que se encontrava”. (MUNIZ 2003, p. 162)

A análise de Durval Muniz mesmo sendo um estereótipo preconceituoso serve bem para ilustrar o tipo homem do nordestino que está estabelecido entre os Brasis. Acima de tudo forte, aparentando ser o mais fraco de todos eles. Desprovido de beleza e de compostura corporal, este sertanejo ainda não possuía nenhuma formosura perceptível. Ele fora moldado a partir da lida com o gado e tinha um tipo de vida que se formou a partir desta. A estatura retardada devida a alimentação pobre, assemelha-se muitas vezes em tempos de seca a magreza do próprio animal de trabalho. Seu principal trejeito está denunciado no momento em que se põe à espera de algo, sua aparência deprimente, abatida e displicente, em sua brilhante obra “Os Sertões”, Euclides da Cunha retrata esse comportamento típico do sertanejo:

“A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.”(CUNHA,1984)

Esse tipo de comportamento, serve como couraça para esconder o real estigma deste homem, no momento que se põe em situação que requer mais destreza toda essa carga desengonçada se transmuta em um novo tipo físico pomposo ao galopar de um cavalo, ou mula, onde se estabelece destemido , possuidor de uma força inexplicável. Assim destaca-se o Vaqueiro, como um tipo sertanejo criado com o gado, que assim como a terra que racha diante do sol castigante, espera sempre do tempo um socorro possível, próximo e infalível.
O vaqueiro, o qual nascera em uma rancharia temporária, cresce em meio a um habitat de muita rusticidade e adaptação, o improviso e a dificuldade fazem com que se acostume a viver com limitações sejam elas de ordem cultural, educacionais e financeiras. Sem acesso a escola ele aprende na própria lida com o gado todas as formas de encarar a vida real, suas dificuldades e oportunidades. O tipo étnico do vaqueiro provém do contato do branco colonizador com o índio, durante a penetração do gado nos sertões do Nordeste brasileiro.
Esse personagem é a figura central de uma fazenda, de propriedade de um latifundiário que reconhece e recompensa-o pelo seu trabalho é árduo e contínuo. Passa grande parte do tempo montado a cavalo percorrendo a fazenda, fiscalizando as pastagens, as cercas e as aguadas (fonte, rio, lagoa ou qualquer manancial existente numa propriedade agrícola). O maior problema enfrentado pelo vaqueiro é o da água. Às vezes o gado tem que ser levado por dezenas de quilômetros até os bebedouros. Na época da migração ele tem que conduzir o gado para lugares distantes na ida e na volta.
A indumentária do vaqueiro é sua armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.
O interior do RN é embelezado com paisagens que falam por si só da presença outrora e presente deste tipo de humanidade. Diversas cidades estabelecidas, foram outrora entrepostos e grandes fazendas ou currais onde os tropeiros e vaqueiros se arranchavam, ou momentaneamente vagueavam o gado. Cercados e currais, casas com coxeiras e mata-burros  ilustram a lida da pecuária.
Entre os moradores destas regiões se formaram uma típica rotina de cooperação, muitos povoados se estabeleciam ligados a uma arvore genealógica comum, essa troca de favores permitiu seguidamente a realização de festividades religiosas, casamentos, batizados e a vaquejada. Esta última despontou como uma manifestação que embora pertencente a atividade natural da lida, ocorria simbolicamente como uma prova de coragem e astúcia para o homem sertanejo. Euclides da Cunha descreve:

“Esta solidariedade de esforços evidencia-se melhor na "vaquejada", trabalho consistindo essencialmente no reunir, e discriminar depois, os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de mistura, em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos.” ( CUNHA1984)

Com todo este aparato se forma a atmosfera de um imenso sertão. Onde o sertanejo vive do trabalho que executa, sua lida molda-o à sua imagem. A recompensa pela sua dedicação e empenho era uma quarta do rebanho recolhido, permitindo assim que o pequeno homem da labuta possa um dia torna-se um criador independente. Outra atividade desempenhada é a de agricultor, ora apenas de subsistência como destaca Darcy Ribeiro em “O Povo Brasileiro”:

“Cada criador procurou, então fazer-se também lavrador de mocó, ocupando nessa tarefa as famílias de seus vaqueiros e, depois, gente especialmente atraída para os novos cultivos, povoando assim ainda mais os sertões semi-áridos.” (RIBEIRO, 1995)

Em face da oportunidade de trabalho inovadora, o lavrador e o vaqueiro sertanejo enquadraram-se como uma oferta de mão-de-obra barata, que embora não sendo escrava preencheu o ímpeto e o interesse dos latifundiários. Os sertanejos executando o trabalho de meia, somente conseguiam render o que lhes era necessário pra sobreviver. Tal situação se equivale ao camponês aldeão da Europa feudal, que nascia e morria extraindo da terra sua necessidade e nada mais, em virtude dos foros e tributos que haviam de conceder aos seus Suseranos. O direito a terra não é possível, vive arranchado.
A vida no Sertão semi-árido nordestino não é, e nunca foi fácil. No inicio da fase da República Velha a desigualdade social em relação ao desenvolvimento acelerado das oligarquias do café, estabeleceram uma característica social que foi interposta devido o grande isolamento cultural que o fator econômico causou. De um lado, o país Urbano, exportador, passou a espelhar-se num todo nas culturas internacionais principalmente as ocidentais. Nesta atmosfera estabeleceu-se o Messianismo brasileiro, um problema social que permeava sob a figura de uma sociedade atrasada, interiorana e pobre, que passou a direcionar sua crença a figura de um líder que  iria guiá-los a um tempo de paz.
Na região que hoje se conhece como Nordeste, mais precisamente na região de Jeremoabo na Bahia, apareceu a mais conhecida destas manifestações do Messianismo brasileiro: O Arraial de Canudos.

 ‘“A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico, dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica — o tempo.( CUNHA1984)

A figura religiosa no caso de canudos esteve na pessoa de Antônio Conselheiro, que sua mensagem anunciava a proximidade de um tempo de recompensa e gozo, onde seria preciso preparar o caminho para o retorno do Rei Dom Sebastião, Português, desaparecido na batalha de Alcácer-quibir, prescindindo a instalação do tempo de paz Milenar. Assim o Messianismo não atacava a religião cristã, apenas pretendia estabelecer a paz no meio rústico rural.

"Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influencia no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guindo-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura".( CUNHA1984)

Os traços da Comunidade sertaneja está totalmente ligada ao Messianismo, os casebres, fazendas, rancharias etc. remetem o estilo de vida e crença destes sertanejos. Os altares nas salas, as cruzes nas portas, os trejeitos e sobretudo a superstição. Além disso o Messianismo, em geral, criou uma hierarquia social de  comportamento social intrínseco, onde os que aparentam ser sábios são poderosos, os que sabem rezar merecem respeito e  a ajuda mútua é característica presente. Esse perfil foi empreendido pela massa, incompreendidos pensavam, e pensam um estilo de vida ligado ao comunismo primitivo , o mesmo que foi aniquilado pelo Governo no fim do século XIX.

Referências

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez. 2001.
________Nordestino, uma invenção do falo, uma história
do gênero masculino (Nordeste 1920 1940). Maceió: Catavento. 2003.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Euclides da Cunha: Os Sertões In MOTA, Lourenço
DANTAS (org.) Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999.
 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

André Soares, Concluinte do Curso de História da UnP
email: a.souza.soares@hotmail.com


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